Saturday, December 09, 2006

Substanciar David

Dentro de mim, o deserto. Um deserto de pedras angulosas e cortantes, de pó que me asfixia quando inspiro e os lacraus e as serpentes. Paradóxico-tóxico, quando os bichos me mordem as plantas dos pés andrajosos de caminho. Quero sucumbir ao cansaço, sonho uma morte tranquila, o paraíso só se conseguir romper-me em abundância sanguínea.
Colho três pedras, só três pedras que repousam diante dos meus pés. Pergunto-te, queres matar-me, respondes, sim, sou filisteia, tenho um exército nascido das infindáveis fontes da guerra, um exército cujo fim não vislumbras nem ao fim do dia quando os contrastes são mais vivos. Quero matar-te e espalhar o teu sangue por toda a parte, alimentar todas as chamas que te consomem nos dias que parecendo pardos, te destroem. Quero que morras de amor.
Volto-te as costas, volto-tas porque nunca vieste saber da minha gente, nunca quiseste soltar um gemido de compaixão pela poça, pela lama, pelo estrume em que sempre vivemos. Montavas o teu império de fusos e rocas e malhas e tecias infindáveis panos de ignomínia dos meus. Até que te vi cruzando o rio para o lado de lá, e fazia-lo todos os dias, eu pensando que deserto não era ali. Mas era ali que morava o deserto de todas as emoções, por cada vez que passavas era um pouco mais de espírito que era lavado e levado rio abaixo. Ficou-me a imagem forte, de nas minhas costas saber que estava um ser gigantesco quase alado, de uma fealdade imensa, mas que não podia ignorar. Pelo chão chegava o resíduo de um cheiro atípico, cheirava a guerra e eu inspirava-a. Ao longe ouvia gritos de glória à gigante Golias, mata-o, mata-o se o amas.
Exigi-me uma reacção em poucos segundos. Porque te tinha voltado as costas. Porque não sabes quanto me preparei para essa grande prova final que haveria de vir e veio um dia porque tu a exigiste. Eras gigante, mas em poucos segundos esqueci-me de tudo isso e lembrei-me que podias estar em qualquer outra realidade, que podias ter uma flor na cabeça, ou uma mosca desinteressadamente voando sobre o teu crânio. Continuei de costas e tu parada, pés firmemente pousados sobre o chão, sabia que me esperava um reinado que não queria se te oferecesse como troféu, seria eu o Messias? Coloquei uma pedra na funda e continuei afastando-me de ti e assim caminhando cheguei ao pé dos meus homens que me esperavam.
Bruscamente, tomei balanço, rodei a funda no ar e a pedra chocou num estalido seco com o teu crânio e sangue jorrando. Morreste num volte-face.

(Edição em papel do DN Jovem, 15 de Dezembro de 2006)

Saturday, December 02, 2006

O peralvilho

A humanidade mergulhada numa névoa não pode sair dela num ai. Pelas manhãs de orvalho reunido e colhido em gotas descendentes, pelos algerozes ferrugentos parecendo vibrar com o ranger arrastado dos rodados dos carros de bois sobre a calçada, a névoa preenchia todos os espaços, apertando-se até entre os ocos deixados pela queda natural dos nós na madeira das tábuas das carroças.
A azáfama não começava logo, havia um certo rumor, estes sons que já sentimos no ar. Ainda o sol não tinha nascido e já se ouvia o desfolhar das hortaliças sobre as bancas que ás vezes eram os carros e em casos extremos de necessidade de rendimentos ou de falta de serventia, os bois eram levados à feira do gado onde eram apregoados e vendidos.
Os maiores negociantes, admirados por todos, conseguiam vender boi velho por novo aos mais incautos. O mesmo faziam as mulheres da fruta, a padeira e o funileiro, vendendo artigo chinês, importado de Espanha ou intensamente aditivado pela mais natural e nacional mercadoria de todas as bancas e arredores. Tudo isto com excepção de alguns poucos feirantes de conhecida e reconhecida capacidade comercial, que como sabemos, não têm nada a esconder e gostam de satisfazer o cliente com a confiança que ele merece.
Vinham mulheres de bigode, de longe, sem olhos, mancos e cegos com os dois olhos, todos vinham à feira comprar os seus vestidos de ir à missa, o seu novíssimo enxerto de limoeiro negociado coçando a careca, a sua masseira de amassar o pão de Nosso Senhor, não o que o Diabo amassou, que esses não iam à feira enquanto a vida não se resolvesse. Todos menos o Senhor Conde, de fartos folhos, jaqueta escura de veludo, chapéu de coco e bengala. Fartos folhos, e botões de punho, sapato luzente e calça vincada, passeava entre as largas alamedas exibindo o seu ouro ao pescoço, qual mordoma de Viana. Quando lhe perguntavam as horas, puxava do seu Roskoff, que por sinal, enganou muita gente enquanto serviu. Até o Senhor Conde.
Era um erudito, na verdade, uma pessoa que passaria perfeitamente por convidado dos melhores casamentos das melhores famílias das redondezas, tal a classe do vestir, a variedade temática do falar e o andar etéreo e simultaneamente compenetrado pela decisão com que avançava uma perna após outra. Desde sempre assim o conheceram, exuberante, mas misterioso.

(Edição on-line do DN Jovem, 1 de Dezembro de 2006)