Thursday, November 23, 2006

O boi e o palácio

Tenho por segura a opinião que naquele dia não estava perante uma iluminada pelo ensino sistemático do trivium e do quadrivium. Ela olhava de soslaio aquela obra complicadíssima, plena de depósitos invisíveis da imaginação, criatividade, sentimento e emoção do autor. Janson, historiador e crítico, usaria certamente esse bom exemplo para melhor ilustrar o seu calhamaço com elevada inércia para arremesso de conceitos. Difícil aquela obra de arte, extremamente complexa e distante, um dos mais saborosos pitéus postos à vista dos visitantes num dos muitos centros de arte contemporânea espalhados pelo mundo.
Ser contemporâneo é fazer parte deste tempo. Por muito conservador ou atrasado mental que um espectador possa ser (numa perspectiva menos politicamente correcta que a primeira), ele deve desconfiar seriamente daqueles que rotulam a sua arte como contemporânea, sem terem sequer a noção que do acidental rabisco rupestre improvisado à “Fonte” de Marcel Duchamp foi um passo e medindo-o, foi bastante curto. Pouco se inventou no tempo que medeia os dois acontecimentos, tempo de oposição permanente entre a mimesis e a diegesis. Porque estas correntes desde sempre se confrontaram nas várias expressões: Boticelli em “Primavera” e Leonardo com as suas Nossas Senhoras iluminadas de forma anti-natural, Vivaldi com as suas quatro estações e Schönberg com a música atonal, entre outros exemplos. Reflectindo sobre a possibilidade de lograr plenamente uma destas duas noções numa obra, isto é, levando a sua assumpção ao extremo, percebe-se que ambas são inatingíveis. O convívio entre as duas é necessário e o compromisso mútuo permanente.
Além disto, há ainda quem pretenda heroicamente retirar do fundo do lodaçal relativista a única arte, ela que tem que ser necessariamente verdadeira, boa e bela. Nada de mais errado. Bailarinos defecando em pleno palco, música ensurdecedora com um número significativo de batidas por minuto, performances mais ou menos conceptuais, instalações luminosas quotidianas, o reles design publicitário, são formas de expressão artística enquanto houver um espectador que as considere como tal. Negar essas formas de expressão artística é discutir o seu enquadramento nas categorias habituais. Ignorá-las como tal faria por isso muito mais sentido do que debatê-las, se o objectivo é exclui-las. A arte não tem porque ser sequer edificante, pode negar a humanidade, pode ser feita e apreciada por tiranos e ditadores. O fundamental está nesse “impulso criador fundamental” que é a criação, como recentemente afirmava Paul Auster, na entrega do prémio Príncipe de Astúrias.
Elevar a opinião de certos espectadores ao estatuto de crítica é hierarquizar a fruição de algo que não pode também ser hierarquizado. À expressão “gosto mais de … do que de …”não corresponde objectivamente o cumprimento de certas condições pré-estabelecidas, quais cânones renascentistas. Os agentes essenciais são o criador e o espectador, que aprecia segundo as suas referências. O criador do palácio e o boi espectador, que olha.
A jovem acabou por olhar para trás e perceber o erro. Rindo, entendeu que a obra afinal, estava nas suas costas, não junto à etiqueta fixa na parede. Para ela, olhou cerca de três segundos e na galhofa, meteu o braço no da amiga e foi assim descontraidamente ver o resto das obras nas redondezas à procura de sentido, um pouco mais inquieta do que antes.

(Edição on-line do DN Jovem, 24 de Novembro de 2006)

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