Thursday, May 21, 2015

Saturday, January 20, 2007

Confirma então, senhora Thatcher, que cultivou durante algum tempo uma relação de amizade com o general chileno Augusto Pinochet? Sim, confirmo.
Como definiria a relação que tinha com ele? Produtiva.
Que produto obteve então? Algum apoio estratégico.
Fala do conflito das Malvinas? Sim, é dele que falo.
Em que consistia então esse “apoio estratégico”? Enquanto decorria a Guerra das Falkland, da qual a Grã-Bretanha saiu vitoriosa, foram-nos fornecidas preciosas informações que nos permitiram vencer o conflito.
A que tipo de informações se refere? Informações militares, essencialmente.
Concretize, por favor, senhora Thatcher. As nossas forças eram prevenidas dos ataques inimigos.
E de que forma, senhora Thatcher? Dado que o Chile e a Argentina tinham vivido uma disputa pela Terra do Fogo, vigiavam-se mutuamente. A Grã-Bretanha limitou-se a aproveitar o facto de o Chile ter radares apontados ao espaço aéreo do nosso inimigo. Sabendo as alturas em que a aviação argentina descolava, podíamos actuar preventivamente.
Confirma então que o general Pinochet colaborou na vitória da Grã-Bretanha? Sim, confirmo.
Como qualificaria a importância dessa colaboração? A colaboração do general Pinochet foi muito importante para a vitória da Grã-Bretanha.
Arriscaria dizer decisiva? Foi muito importante, sublinho.
Senhora Thatcher, que reflexo teve então essa colaboração na sua relação pessoal, agora com o senhor Pinochet? Nunca desenvolvemos uma relação pessoal muito íntima.
Por que se manifestou “profundamente entristecida com a sua morte? Ora, isso são afirmações convencionais aquando da morte de alguém.
Acrescentou ainda que tencionava enviar à família do senhor Pinochet uma mensagem de “profundas condolências”. Sim, é verdade.
Esta manifestação de pesar tem relação com o apoio militar de que falávamos há pouco ou não, senhora Thatcher? Sim, tem algo que ver com esse apoio.
Sabe, senhora Thatcher, depois das eleições de 11 de Dezembro de 1989, o seu amigo, depois de ter assegurado a liderança militar do país a que antes presidia dirigiu-se ao novo presidente, Patrício Aylwin, perguntando-lhe como estavam os seus joelhos. Pinochet acabou por recomendar ao presidente Aylwin que tivesse cuidado com os joelhos, porque “quando os subordinados vêem que falham os joelhos ao comando, sobem-lhe às barbas e esse é o princípio do fim”. Concorda? Há algum fundo de verdade nessas declarações, uma liderança forte agiganta um país.
Vê algum tipo de semelhança entre este tipo de procedimento político e a sua governação? Sim, há que ter alguma força moral para alcançar os objectivos da governação.
O epíteto “Dama de Ferro” que lhe colocaram os soviéticos pela sua forte oposição ao comunismo, funcionaria também como metáfora da sua actuação política? Posso reconhecer que sim.
Reconhece que foi pela acção do general Pinochet que morreram ou desapareceram três mil pessoas, trinta mil foram presas e torturadas e que quantias significativas foram depositadas num banco americano, provenientes de desvios fiscais e do tráfico de armas? Sim, reconheço.
Mantém então a sua declaração de amizade? Sim, a ajuda deve ser sempre reconhecida.
Senhora Thatcher, alguma vez ponderou, durante a sua governação, colocar os Direitos Humanos, a democracia, a civilização, acima dos interesses particulares de uma nação? Sim, mas as circunstâncias são por vezes mais determinantes que os princípios.
Muito obrigado, senhora Thatcher.

(Edição on-line do DN Jovem, 19 de Janeiro de 2007)

Saturday, January 13, 2007

A reincidente

Primeiro entrava a sua aura, definindo uma esfera protectora à sua volta, logo então os seus pulsos refolhados e apesar do reumático, extremamente delicados e cheirosos. Por vezes recuava ligeiramente, não sem a devida eloquência, para colocar a cartola debaixo do braço. Pura exibição, diziam as velhas comendo mil-folhas com aqueles garfos pequenos, com um dente mais grosso, esforçando a mandíbula para deglutir a totalidade da massa deslizante e a dentadura ameaçando protagonismo boca fora. Contudo, o senhor conde constituía em si mesmo, um todo coerente. Para pastiches já bastavam as carroças movidas a gasolina do senhor Benz, de tempos mais recuados, ainda assim.
Para se sentar, vinha um funcionário da pastelaria, nem sempre o que estava mais perto, segurar-lhe o vasto jaquetão de veludo, ás vezes negro, ás vezes carmim, e perguntava sempre, onde ponho senhor conde, ele retorquia, não tem um bengaleiro, não, não tenho, olhe então se não se importa deixe-me dobrá-lo e guarde-o numa gaveta, tem uma vaga? sim tenho, uma em que guardamos o papel de embrulho natalício, não está em uso.
Era então um espectáculo similar a uma sessão de espiritismo, o senhor conde impulsionando vigorosamente os planos têxteis definidos entre os vincos da peça, movendo as espáduas, braços a baixo e braços a cima, batendo e esticando, de costas. Com os solavancos finais ajeitava as palas e para terminar definitivamente, reposicionava o alfinete.
Aqui está, pode levar, sim senhor conde, já volto para lhe trazer o costume, não, hoje não me traga o costume, quero um croissant e um sumo de laranja, por favor, sim senhor conde, muito obrigado, como disse que se chamava? Costa, senhor conde, isso, Costa.
Enquanto esperava, o senhor conde verificava o tamanho dos anéis, um dia tiveram que lhe cortar um por causa de uma artrose. Tocava também os fios de ouro que trazia ao pescoço e que soavam arrastadamente uns sobre os outros. Pedia a um marçano que ali passava que lhe comprasse uma cigarreira para fumar os seus kentucky’s. Puxava de um cigarro e pousava-o na mesa. Então cruzava os dedos, recostava-se e recolhia os seus braços sobre os da cadeira. O funcionário voltava e servia-lhe o sumo num belíssimo copo de vidro com asa como só era habitual naquele lugar, o croissant devidamente aquecido na torradeira, barrado com manteiga por fora e não por dentro, como convinha ao requintado gosto do cliente.
Calmamente, o senhor Conde mordia e tragava a sua frugal refeição, de olhos voltados para a mesa. Repentinamente, o sol que brilhava lá fora e cujos raios se difundiam através dos vidros das janelas desaparecia, enquanto um espectro com cheiro a perfume se abatia sobre ele. Lentamente, o senhor conde levantava a cabeça definindo paralelos e meridianos irregulares em qualquer tratado de perspectiva, usando para isso as curvas do exuberante corpo feminino que diante de si estava disposto. Sobreposta ao liso ventre, uma rosa do florido vestido de seda artificial e o seu caule, que se prolongavam em redor, chamavam a atenção de quem os visse. Pareceu-lhe estar a ser inconveniente e sentiu necessidade de abreviar as apreciações, sobremirando as linhas das costelas, as mamas, os ombros, o pescoço, o fino queixo e os lábios da boca. De entre eles saiu um cigarro puxado por dedos de amarelo envernizados e enquanto estes se moviam, o senhor conde ouviu muito remotamente uma voz que lhe era familiar dizendo, olá Henrique, como está.

(Edição on-line do DN Jovem, 12 de Janeiro de 2007)

Saturday, December 09, 2006

Substanciar David

Dentro de mim, o deserto. Um deserto de pedras angulosas e cortantes, de pó que me asfixia quando inspiro e os lacraus e as serpentes. Paradóxico-tóxico, quando os bichos me mordem as plantas dos pés andrajosos de caminho. Quero sucumbir ao cansaço, sonho uma morte tranquila, o paraíso só se conseguir romper-me em abundância sanguínea.
Colho três pedras, só três pedras que repousam diante dos meus pés. Pergunto-te, queres matar-me, respondes, sim, sou filisteia, tenho um exército nascido das infindáveis fontes da guerra, um exército cujo fim não vislumbras nem ao fim do dia quando os contrastes são mais vivos. Quero matar-te e espalhar o teu sangue por toda a parte, alimentar todas as chamas que te consomem nos dias que parecendo pardos, te destroem. Quero que morras de amor.
Volto-te as costas, volto-tas porque nunca vieste saber da minha gente, nunca quiseste soltar um gemido de compaixão pela poça, pela lama, pelo estrume em que sempre vivemos. Montavas o teu império de fusos e rocas e malhas e tecias infindáveis panos de ignomínia dos meus. Até que te vi cruzando o rio para o lado de lá, e fazia-lo todos os dias, eu pensando que deserto não era ali. Mas era ali que morava o deserto de todas as emoções, por cada vez que passavas era um pouco mais de espírito que era lavado e levado rio abaixo. Ficou-me a imagem forte, de nas minhas costas saber que estava um ser gigantesco quase alado, de uma fealdade imensa, mas que não podia ignorar. Pelo chão chegava o resíduo de um cheiro atípico, cheirava a guerra e eu inspirava-a. Ao longe ouvia gritos de glória à gigante Golias, mata-o, mata-o se o amas.
Exigi-me uma reacção em poucos segundos. Porque te tinha voltado as costas. Porque não sabes quanto me preparei para essa grande prova final que haveria de vir e veio um dia porque tu a exigiste. Eras gigante, mas em poucos segundos esqueci-me de tudo isso e lembrei-me que podias estar em qualquer outra realidade, que podias ter uma flor na cabeça, ou uma mosca desinteressadamente voando sobre o teu crânio. Continuei de costas e tu parada, pés firmemente pousados sobre o chão, sabia que me esperava um reinado que não queria se te oferecesse como troféu, seria eu o Messias? Coloquei uma pedra na funda e continuei afastando-me de ti e assim caminhando cheguei ao pé dos meus homens que me esperavam.
Bruscamente, tomei balanço, rodei a funda no ar e a pedra chocou num estalido seco com o teu crânio e sangue jorrando. Morreste num volte-face.

(Edição em papel do DN Jovem, 15 de Dezembro de 2006)

Saturday, December 02, 2006

O peralvilho

A humanidade mergulhada numa névoa não pode sair dela num ai. Pelas manhãs de orvalho reunido e colhido em gotas descendentes, pelos algerozes ferrugentos parecendo vibrar com o ranger arrastado dos rodados dos carros de bois sobre a calçada, a névoa preenchia todos os espaços, apertando-se até entre os ocos deixados pela queda natural dos nós na madeira das tábuas das carroças.
A azáfama não começava logo, havia um certo rumor, estes sons que já sentimos no ar. Ainda o sol não tinha nascido e já se ouvia o desfolhar das hortaliças sobre as bancas que ás vezes eram os carros e em casos extremos de necessidade de rendimentos ou de falta de serventia, os bois eram levados à feira do gado onde eram apregoados e vendidos.
Os maiores negociantes, admirados por todos, conseguiam vender boi velho por novo aos mais incautos. O mesmo faziam as mulheres da fruta, a padeira e o funileiro, vendendo artigo chinês, importado de Espanha ou intensamente aditivado pela mais natural e nacional mercadoria de todas as bancas e arredores. Tudo isto com excepção de alguns poucos feirantes de conhecida e reconhecida capacidade comercial, que como sabemos, não têm nada a esconder e gostam de satisfazer o cliente com a confiança que ele merece.
Vinham mulheres de bigode, de longe, sem olhos, mancos e cegos com os dois olhos, todos vinham à feira comprar os seus vestidos de ir à missa, o seu novíssimo enxerto de limoeiro negociado coçando a careca, a sua masseira de amassar o pão de Nosso Senhor, não o que o Diabo amassou, que esses não iam à feira enquanto a vida não se resolvesse. Todos menos o Senhor Conde, de fartos folhos, jaqueta escura de veludo, chapéu de coco e bengala. Fartos folhos, e botões de punho, sapato luzente e calça vincada, passeava entre as largas alamedas exibindo o seu ouro ao pescoço, qual mordoma de Viana. Quando lhe perguntavam as horas, puxava do seu Roskoff, que por sinal, enganou muita gente enquanto serviu. Até o Senhor Conde.
Era um erudito, na verdade, uma pessoa que passaria perfeitamente por convidado dos melhores casamentos das melhores famílias das redondezas, tal a classe do vestir, a variedade temática do falar e o andar etéreo e simultaneamente compenetrado pela decisão com que avançava uma perna após outra. Desde sempre assim o conheceram, exuberante, mas misterioso.

(Edição on-line do DN Jovem, 1 de Dezembro de 2006)

Thursday, November 23, 2006

O boi e o palácio

Tenho por segura a opinião que naquele dia não estava perante uma iluminada pelo ensino sistemático do trivium e do quadrivium. Ela olhava de soslaio aquela obra complicadíssima, plena de depósitos invisíveis da imaginação, criatividade, sentimento e emoção do autor. Janson, historiador e crítico, usaria certamente esse bom exemplo para melhor ilustrar o seu calhamaço com elevada inércia para arremesso de conceitos. Difícil aquela obra de arte, extremamente complexa e distante, um dos mais saborosos pitéus postos à vista dos visitantes num dos muitos centros de arte contemporânea espalhados pelo mundo.
Ser contemporâneo é fazer parte deste tempo. Por muito conservador ou atrasado mental que um espectador possa ser (numa perspectiva menos politicamente correcta que a primeira), ele deve desconfiar seriamente daqueles que rotulam a sua arte como contemporânea, sem terem sequer a noção que do acidental rabisco rupestre improvisado à “Fonte” de Marcel Duchamp foi um passo e medindo-o, foi bastante curto. Pouco se inventou no tempo que medeia os dois acontecimentos, tempo de oposição permanente entre a mimesis e a diegesis. Porque estas correntes desde sempre se confrontaram nas várias expressões: Boticelli em “Primavera” e Leonardo com as suas Nossas Senhoras iluminadas de forma anti-natural, Vivaldi com as suas quatro estações e Schönberg com a música atonal, entre outros exemplos. Reflectindo sobre a possibilidade de lograr plenamente uma destas duas noções numa obra, isto é, levando a sua assumpção ao extremo, percebe-se que ambas são inatingíveis. O convívio entre as duas é necessário e o compromisso mútuo permanente.
Além disto, há ainda quem pretenda heroicamente retirar do fundo do lodaçal relativista a única arte, ela que tem que ser necessariamente verdadeira, boa e bela. Nada de mais errado. Bailarinos defecando em pleno palco, música ensurdecedora com um número significativo de batidas por minuto, performances mais ou menos conceptuais, instalações luminosas quotidianas, o reles design publicitário, são formas de expressão artística enquanto houver um espectador que as considere como tal. Negar essas formas de expressão artística é discutir o seu enquadramento nas categorias habituais. Ignorá-las como tal faria por isso muito mais sentido do que debatê-las, se o objectivo é exclui-las. A arte não tem porque ser sequer edificante, pode negar a humanidade, pode ser feita e apreciada por tiranos e ditadores. O fundamental está nesse “impulso criador fundamental” que é a criação, como recentemente afirmava Paul Auster, na entrega do prémio Príncipe de Astúrias.
Elevar a opinião de certos espectadores ao estatuto de crítica é hierarquizar a fruição de algo que não pode também ser hierarquizado. À expressão “gosto mais de … do que de …”não corresponde objectivamente o cumprimento de certas condições pré-estabelecidas, quais cânones renascentistas. Os agentes essenciais são o criador e o espectador, que aprecia segundo as suas referências. O criador do palácio e o boi espectador, que olha.
A jovem acabou por olhar para trás e perceber o erro. Rindo, entendeu que a obra afinal, estava nas suas costas, não junto à etiqueta fixa na parede. Para ela, olhou cerca de três segundos e na galhofa, meteu o braço no da amiga e foi assim descontraidamente ver o resto das obras nas redondezas à procura de sentido, um pouco mais inquieta do que antes.

(Edição on-line do DN Jovem, 24 de Novembro de 2006)

Sunday, November 19, 2006

O leva-livros

Era um veículo alto, vermelho, com a frente adiantada como se uma cavalgadura ali estivesse, aspecto de couraçado submarino da Primeira Grande Guerra. A cor que revestia a chapa intermitentemente sonora, observava-se gasta, os angulosos vértices daquela massa de cultura pingavam gotas bem bebidas de ferrugem, nas invernias amiúde rigorosas daqueles tempos. Não, o seu aspecto não era dominado pela frente saliente, era antes a sua semelhança com o modelo dois cavalos da mesma marca francesa que fazia a gente olhar.
Era o porte, era a atitude decidida com que o condutor fazia chegar o veículo, à hora marcada, ao lugar certo. Flamínio, leva-livros de profissão, por antinomia aos revelhos guarda-livros com tendência para o alfarrabismo. Apenas parava sob as ramadas por Setembro, à porta de conhecidos combinando eventos para fins-de-semana e feriados, em qualquer valeta para verter fluidos, frente a qualquer incidente para prestar auxílio imediato. Fazia da cultura missão, a poesia, a literatura, o teatro. Lera todos os russos, todos os franceses e alguns americanos, era a fundação que lhe permitia tudo isto. Dela falava com orgulho e dos seus camaradas, dos seus discursos apelando a união do colectivo. Tinha sido ela a entregar-lhe o ofício de espalhar o seu maior prazer: ler. Sem mais, sem pipocas ou tremoços a acompanhar, as publicações periódicas em geral (aos quais dedicava pelo menos meia hora diária antes do início da jornada), os romances actuais, os folhetos, os escritos filosóficos e os poemas de Neruda, tudo lia em catadupa desenfreada. Abria a porta traseira da carrinha, desfiava o ficheiro das devoluções, repetia os nomes dos ausentes, ameaçava os faltosos com uma devolução coerciva ao domicílio. Logo começavam as requisições e por isso era importante ler, para contar aos outros o que sabia, olhe aconselho-lhe este, fala de inovações no amor conjugal, Dona Ermelinda, este é sobre a ginástica sueca, Joca, aqui está o manual prático do corte de madeiras, Senhor Augusto.
A sua vida eram os livros, que geravam vida, nova vida na vida de cada leitor que ali se aviava de conhecimento gratuito. Cada leitor tinha em Flamínio um verdadeiro amigo, porque os livros são para ler, estragou um deixe lá, quem os fez tem mais com este. Achava patéticos os críticos literários, porque cada um encerra em si todas as opiniões do mundo mas apenas dá primazia à mais válida de todas que é a sua.Ler, ler, ler. Nem que Flamínio tivesse um dia que sair de bicicleta incompleta, surdo e preso de pernas a caminho do Céu dos leva-livros. Ler.

(Edição on-line do DN Jovem, 17 de Novembro de 2006)