Saturday, January 13, 2007

A reincidente

Primeiro entrava a sua aura, definindo uma esfera protectora à sua volta, logo então os seus pulsos refolhados e apesar do reumático, extremamente delicados e cheirosos. Por vezes recuava ligeiramente, não sem a devida eloquência, para colocar a cartola debaixo do braço. Pura exibição, diziam as velhas comendo mil-folhas com aqueles garfos pequenos, com um dente mais grosso, esforçando a mandíbula para deglutir a totalidade da massa deslizante e a dentadura ameaçando protagonismo boca fora. Contudo, o senhor conde constituía em si mesmo, um todo coerente. Para pastiches já bastavam as carroças movidas a gasolina do senhor Benz, de tempos mais recuados, ainda assim.
Para se sentar, vinha um funcionário da pastelaria, nem sempre o que estava mais perto, segurar-lhe o vasto jaquetão de veludo, ás vezes negro, ás vezes carmim, e perguntava sempre, onde ponho senhor conde, ele retorquia, não tem um bengaleiro, não, não tenho, olhe então se não se importa deixe-me dobrá-lo e guarde-o numa gaveta, tem uma vaga? sim tenho, uma em que guardamos o papel de embrulho natalício, não está em uso.
Era então um espectáculo similar a uma sessão de espiritismo, o senhor conde impulsionando vigorosamente os planos têxteis definidos entre os vincos da peça, movendo as espáduas, braços a baixo e braços a cima, batendo e esticando, de costas. Com os solavancos finais ajeitava as palas e para terminar definitivamente, reposicionava o alfinete.
Aqui está, pode levar, sim senhor conde, já volto para lhe trazer o costume, não, hoje não me traga o costume, quero um croissant e um sumo de laranja, por favor, sim senhor conde, muito obrigado, como disse que se chamava? Costa, senhor conde, isso, Costa.
Enquanto esperava, o senhor conde verificava o tamanho dos anéis, um dia tiveram que lhe cortar um por causa de uma artrose. Tocava também os fios de ouro que trazia ao pescoço e que soavam arrastadamente uns sobre os outros. Pedia a um marçano que ali passava que lhe comprasse uma cigarreira para fumar os seus kentucky’s. Puxava de um cigarro e pousava-o na mesa. Então cruzava os dedos, recostava-se e recolhia os seus braços sobre os da cadeira. O funcionário voltava e servia-lhe o sumo num belíssimo copo de vidro com asa como só era habitual naquele lugar, o croissant devidamente aquecido na torradeira, barrado com manteiga por fora e não por dentro, como convinha ao requintado gosto do cliente.
Calmamente, o senhor Conde mordia e tragava a sua frugal refeição, de olhos voltados para a mesa. Repentinamente, o sol que brilhava lá fora e cujos raios se difundiam através dos vidros das janelas desaparecia, enquanto um espectro com cheiro a perfume se abatia sobre ele. Lentamente, o senhor conde levantava a cabeça definindo paralelos e meridianos irregulares em qualquer tratado de perspectiva, usando para isso as curvas do exuberante corpo feminino que diante de si estava disposto. Sobreposta ao liso ventre, uma rosa do florido vestido de seda artificial e o seu caule, que se prolongavam em redor, chamavam a atenção de quem os visse. Pareceu-lhe estar a ser inconveniente e sentiu necessidade de abreviar as apreciações, sobremirando as linhas das costelas, as mamas, os ombros, o pescoço, o fino queixo e os lábios da boca. De entre eles saiu um cigarro puxado por dedos de amarelo envernizados e enquanto estes se moviam, o senhor conde ouviu muito remotamente uma voz que lhe era familiar dizendo, olá Henrique, como está.

(Edição on-line do DN Jovem, 12 de Janeiro de 2007)

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