Sunday, November 19, 2006

O leva-livros

Era um veículo alto, vermelho, com a frente adiantada como se uma cavalgadura ali estivesse, aspecto de couraçado submarino da Primeira Grande Guerra. A cor que revestia a chapa intermitentemente sonora, observava-se gasta, os angulosos vértices daquela massa de cultura pingavam gotas bem bebidas de ferrugem, nas invernias amiúde rigorosas daqueles tempos. Não, o seu aspecto não era dominado pela frente saliente, era antes a sua semelhança com o modelo dois cavalos da mesma marca francesa que fazia a gente olhar.
Era o porte, era a atitude decidida com que o condutor fazia chegar o veículo, à hora marcada, ao lugar certo. Flamínio, leva-livros de profissão, por antinomia aos revelhos guarda-livros com tendência para o alfarrabismo. Apenas parava sob as ramadas por Setembro, à porta de conhecidos combinando eventos para fins-de-semana e feriados, em qualquer valeta para verter fluidos, frente a qualquer incidente para prestar auxílio imediato. Fazia da cultura missão, a poesia, a literatura, o teatro. Lera todos os russos, todos os franceses e alguns americanos, era a fundação que lhe permitia tudo isto. Dela falava com orgulho e dos seus camaradas, dos seus discursos apelando a união do colectivo. Tinha sido ela a entregar-lhe o ofício de espalhar o seu maior prazer: ler. Sem mais, sem pipocas ou tremoços a acompanhar, as publicações periódicas em geral (aos quais dedicava pelo menos meia hora diária antes do início da jornada), os romances actuais, os folhetos, os escritos filosóficos e os poemas de Neruda, tudo lia em catadupa desenfreada. Abria a porta traseira da carrinha, desfiava o ficheiro das devoluções, repetia os nomes dos ausentes, ameaçava os faltosos com uma devolução coerciva ao domicílio. Logo começavam as requisições e por isso era importante ler, para contar aos outros o que sabia, olhe aconselho-lhe este, fala de inovações no amor conjugal, Dona Ermelinda, este é sobre a ginástica sueca, Joca, aqui está o manual prático do corte de madeiras, Senhor Augusto.
A sua vida eram os livros, que geravam vida, nova vida na vida de cada leitor que ali se aviava de conhecimento gratuito. Cada leitor tinha em Flamínio um verdadeiro amigo, porque os livros são para ler, estragou um deixe lá, quem os fez tem mais com este. Achava patéticos os críticos literários, porque cada um encerra em si todas as opiniões do mundo mas apenas dá primazia à mais válida de todas que é a sua.Ler, ler, ler. Nem que Flamínio tivesse um dia que sair de bicicleta incompleta, surdo e preso de pernas a caminho do Céu dos leva-livros. Ler.

(Edição on-line do DN Jovem, 17 de Novembro de 2006)

1 comment:

Luis Gaspar said...

Colega. Vou linkar-te de volta. Até já.