Saturday, December 02, 2006

O peralvilho

A humanidade mergulhada numa névoa não pode sair dela num ai. Pelas manhãs de orvalho reunido e colhido em gotas descendentes, pelos algerozes ferrugentos parecendo vibrar com o ranger arrastado dos rodados dos carros de bois sobre a calçada, a névoa preenchia todos os espaços, apertando-se até entre os ocos deixados pela queda natural dos nós na madeira das tábuas das carroças.
A azáfama não começava logo, havia um certo rumor, estes sons que já sentimos no ar. Ainda o sol não tinha nascido e já se ouvia o desfolhar das hortaliças sobre as bancas que ás vezes eram os carros e em casos extremos de necessidade de rendimentos ou de falta de serventia, os bois eram levados à feira do gado onde eram apregoados e vendidos.
Os maiores negociantes, admirados por todos, conseguiam vender boi velho por novo aos mais incautos. O mesmo faziam as mulheres da fruta, a padeira e o funileiro, vendendo artigo chinês, importado de Espanha ou intensamente aditivado pela mais natural e nacional mercadoria de todas as bancas e arredores. Tudo isto com excepção de alguns poucos feirantes de conhecida e reconhecida capacidade comercial, que como sabemos, não têm nada a esconder e gostam de satisfazer o cliente com a confiança que ele merece.
Vinham mulheres de bigode, de longe, sem olhos, mancos e cegos com os dois olhos, todos vinham à feira comprar os seus vestidos de ir à missa, o seu novíssimo enxerto de limoeiro negociado coçando a careca, a sua masseira de amassar o pão de Nosso Senhor, não o que o Diabo amassou, que esses não iam à feira enquanto a vida não se resolvesse. Todos menos o Senhor Conde, de fartos folhos, jaqueta escura de veludo, chapéu de coco e bengala. Fartos folhos, e botões de punho, sapato luzente e calça vincada, passeava entre as largas alamedas exibindo o seu ouro ao pescoço, qual mordoma de Viana. Quando lhe perguntavam as horas, puxava do seu Roskoff, que por sinal, enganou muita gente enquanto serviu. Até o Senhor Conde.
Era um erudito, na verdade, uma pessoa que passaria perfeitamente por convidado dos melhores casamentos das melhores famílias das redondezas, tal a classe do vestir, a variedade temática do falar e o andar etéreo e simultaneamente compenetrado pela decisão com que avançava uma perna após outra. Desde sempre assim o conheceram, exuberante, mas misterioso.

(Edição on-line do DN Jovem, 1 de Dezembro de 2006)

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